domingo, 29 de agosto de 2010

Fui naquele dia


O dia amanheceu chuvoso. Esta era a chuva que ele esperava ser capaz de apagar os passos deixados pela movimentação repentina da noite passada. " Assim ninguém vai poder acusar-me do que quer que seja".

Os dias vão longos, assim como é comprida a nossa vontade de mudar e depois a vontade transforma-se em apatia e desalento. Ele sabia o tamanho exacto da sua preguiça. E ela sabia exactamente que a vida lhe pedia que soubesse esperar. Ela sabia que havia chegado a hora de ser crescida. Mas o tamanho dele não era o tamanho dela, e nesta diferença vivia o sonho de serem perfeitos um para o outro." É contigo que quero despedir-me deste mundo", diziam ambos como se soubessem que depois deste mundo há outro, outros, vários mundos.

Lembro-me de uma vez os ter ouvido dizer que na imperfeição de serem quem são estava o epicentro da felicidade. Na altura, entre um copo de vinho tinto e outro, julguei-os certos. Agora parece-me que este mundo criou mais dois loucos. Dois seres que se projectam com demasiada facilidade um no outro. Ainda na semana passada os convidei para jantarem comigo. Aceitaram o convite com muito agrado, e demasiada honra, mas depois o jantar revelou-os na sua densidade. E eu estava lá como que numa promessa de testemunha. O observador que não quer avançar nas palavras.

Eu também tenho sonhos, mas prefiro vive-los de pé no chão, encostadinho à realidade das 24 horas. Se depois o dia se revelar mais longo lá estarei de sorriso aberto e relógio no bolso. Por enquanto quero apenas viver sem memória, só para não ter de recordar o tempo do que aconteceu entre eles.

Conheci-os numa solarenga manhã de verão. Num daquelas dias em que temos a certeza que Deus existe. O meu cão corria sem regras pelo areal extenso da praia. E como quem não conhece a palavra "inoportuno", tropeçou nas pernas delicadas dela. Demasiado delicadas. Ela caiu, eu gritei e ele correu em direcção a ela. Foi uma corrida carregada de amor. Não estou a falar de amor romântico. Era antes o amor de quem cuida porque sabe que no cuidar está a luz do terno abraço. " Desculpe...está tudo bem consigo?", balbuciei sem hesitação. "Sim", respondeu ela já nos braços dele. Lembro-me de na altura os invejar. A fortuna do amor é mais rara do que a fortuna do poker. E eu tinha azar nas duas. " É cachorro ainda, mal sabe ele o que faz. Desculpem o incomodo". Depois almoçámos os 3, ou 4 se o cachorro contar como ser pensante, e ficámos a conversa horas sem fim. " Tenha casa pertinho. Já está a ficar tarde para se porem a caminho de Lisboa. Se quiserem podem dormir aqui. Garanto-vos que ele vai ficar preso, sem a mínima hipótese de pensar sequer em belas pernas femininas". Rimo-nos e entrámos no meu carro.

Existem minutos, tempos do tempo, que parecem ser feitos para nos lembrarem que nada acontece por acaso. Nesta viagem de carro pareceu-me que os conhecia desde sempre. Ela porque tinha os mesmos valores que eu. E ele porque insistia em acreditar que a vida é uma tremenda galhofa. Eu era uma soma deles os dois. E se aos dois subtrair-mos a ideia de eternidade, lá estava eu.


A minha história é longa, mas curta se a uma conclusão quisermos chegar. Neptuno norteava a minha vida, e neste domínio a ideia predominante era a de amor Universal.
Foto by Carlos Gila