domingo, 28 de dezembro de 2008

Graça e Coragem, parte II - Ken Wilber


" Telefonei à família. Não me lembro exactamente do que disse, mas foi alguma coisa como: "por favor, venham o mais depressa possível." Telefonei a Warren, o querido amigo que tinha estado a ajudar Treya com acupunctura durante os últimos meses. Mais uma vez não me lembro do que disse. Mas acho que o meu tom de voz disse :"é altura de morrer."



A família começou a chegar bastante cedo e cada membro teve a oportunidade de ter uma última conversa aberta com Treya. O que mais me lembro é de ela dizer como amava tanto a sua família, como se sentia incrivelmente afortunada por ter cada um deles. Era como se Treya estivesse determinada a deixar tudo em "pratos limpos" com todos os membros da família. Da sua combustão só ia resultar a pura cinza, no seu corpo não iam sobrar frases por dizer, não ia restar nenhuma culpa, nem nenhuma responsabilidade. E tanto quanto sei, ela conseguiu.



(...)Por volta das 3.30 da madrugada, Treya acordou abruptamente. A atmosfera era quase alucinogénica. Eu acordei de imediato e perguntei-lhe como estava. " Está na altura da morfina?", disse ela com um sorriso. Em toda a sua provação com o cancro, Treya tinha tomado um total de quatro pastilhas de morfina. "Claro amor, tudo o que quiseres". Dei-lhe uma pastilha de morfina e um comprimido para dormir de efeito moderado e tivemos a nossa última conversa.

"Amor, acho que é altura de partir", começou ela.

"Eu estou aqui, querida."

"Estou tão feliz-". Longa pausa. "Este mundo é tão estranho. É mesmo tão estranho. Mas eu vou-me embora." O seu estado de espírito era de alegria, de humor e determinação.


Comecei a repetir várias das frases "essenciais" provenientes das tradições religiosas que ela considerava tão importantes, frases que ela queria que eu lhe lembrasse até ao momento do fim.

"Descontrai com a presença do que É", comecei eu. "Permite que o Eu se estenda pela vasta imensidão de todo o espaço. A tua mente primordial não pode nascer nem morrer. Não nasceu com este corpo e não morrerá com este corpo. Reconhece que a tua mente é eternamente una com o Espírito."



A sua face descontraiu-se e Treya olhou para mim de uma forma clara e directa.

"Vais-me encontrar?"

"Prometo."

"Então é tempo de partir."

Houve uma pausa muito longa e todo o quarto me pareceu ficar iluminado (...). Foi o momento mais sagrado, o momento mais directo, o momento mais simples que eu já mais conheci. Não sabia o que fazer. Estava simplesmente presente para Treya.


Ela movimentou-se em minha direcção, tentando fazer um gesto, tentando dizer alguma coisa, a última coisa que ela me disse. "És o maior homem que eu já conheci. O meu campeão.", sussurou ela. Debrucei-me sobre Treya para lhe dizer que ela era a única pessoa realmente iluminada que eu conhecera. Que um Universo que tinha produzido Treya, era um Universo sagrado. Que Deus existia por sua causa. Eu queria dizer-lhe tudo isto, mas a minha garganta cerrou-se sobre si mesma. Eu não conseguia falar. Balbuciei apenas, "vou-te encontrar querida, a sério que vou..."



Treya fechou os olhos e, para todos os fins, nunca mais os abriu.

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